Povos indígenas são registrados por fotógrafo há mais de 30 anos

Renato Soares começou a carreira em 1986 e, desde então, registra o cotidiano nas aldeias; exposição em Manaus será inaugurada hoje em homenagem ao Dia dos Povos Indígenas.


Por Giulia Bucheroni, Terra da Gente


São mais de trinta anos dedicados à fotografia de etnias brasileiras, milhares de quilômetros rodados e incontáveis cliques - entre filmes e cartões de memórias. Por trás das câmeras está Renato Soares, idealizador do projeto ‘Ameríndios do Brasil’', criado em 1998 com o objetivo de retratar o cotidiano das etnias indígenas do País. É o projeto da minha vida: fotografar e documentar as trezentas e cinco etnias do Brasil. Acabo de chegar da aldeia dos Tuyyka, do Rio Negro, onde já estive outras vezes, e daqui sigo para os Yanomami, da Serra do Pico da Neblina. Tem grupos que eu ainda não fui - muitos por sinal; e isso só me faz querer ainda mais continuar o trabalho", conta o fotógrafo e documentarista, natural de Carmo do Rio Claro (MG) - que começou a carreira em 1986. "Parei de contar a quantidade de povos fotografados quando cheguei na casa dos 60. Os números não são tão importantes, o que vale mesmo é que o trabalho tenha continuidade", destaca. 



Eu não tenho como meta fotografar todos os povos e acabar o trabalho. Eu criei esse projeto justamente para significar, para mim, a documentação dos povos indígenas. Eu devo morrer fotografando os indígenas, não é um projeto que acaba, porque o objetivo é dar visibilidade ao outro, registrar o outro, mostrar o que o outro tem de mais belo, de mais bonito
— Renato Soares, fotógrafo e documentarista

Em 1998 Renato deu início ao projeto ‘Ameríndios do Brasil’'; objetivo é registrar as etnias do País — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

O interesse pelo universo indígena vem da infância e foi consolidado nos primeiros contatos com indígenas da Amazônia, reforçado também pela amizade com o indigenista Orlando Villas Bôas. "O objetivo maior é dar visibilidade a eles, mostrar que eles existem. As fotografias são atuais e mostram pra humanidade que eles existem sim, que são felizes, que são belos e que estão ali. Nós temos que respeitar o outro, temos que dar vazão, ver o outro, olhar para o outro como se olhássemos para nós mesmos, porque o que eles buscam é o mesmo que nós buscamos: felicidade".O objetivo das fotografias é dar visibilidade aos indígenas — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

O objetivo das fotografias é dar visibilidade aos indígenas — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

Entre tantas experiências, fica difícil destacar um momento ou clique, mas Soares se recorda de uma passagem que marcou sua história. "Em 2018 eu estive entre os Yanomami do rio Cauaburis e fui surpreendido ao ver que eles não tinham mais a cultura impressa na pele: não tinham pinturas, cocares, não tinham cores. Um deles ainda me disse 'bom é ser caboclo', e eu olhei aquilo com um certo pessimismo. Aí eu percebi que tal situação era resultado da presença de um pastor que estava desviando toda a questão cultural, simplesmente destruindo a cultura de um povo reconhecido pela arte. Fiquei entristecido com aquilo... Eu tinha levado um projetor multimídia, arrumei um lençol, consegui um gerador e, assim, montei um telão; então convidei a aldeia inteira para assistir à uma projeção com fotografias de vários povos, mostrando a beleza, a cultura, a arte... Eles ficaram olhando em silêncio. No outo dia, ao amanhecer, a aldeia inteira estava pintada, todos se decorando, colocando braçadeiras, cocares emplumados, e os pajés começaram a cantar e rezar no pátio da aldeia. Foi ali que eu percebi que a fotografia tem o poder, sim, de transformar. Foi incrível", lembra Soares. 


 

"O que me motiva é ver que tudo isso tem uma razão, que a fotografia também tem o seu discurso, que ela vem seguindo um caminho bonito e que é transformadora", completa.

O interesse pelo universo indígena vem da infância e foi consolidado nos primeiros contatos com indígenas da Amazônia — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

As obras de Renato já estiveram em importantes exposições como “O Último Kuarup” - Masp/ 2006 e na mostra itinerante “A Última Viagem de Orlando Villas Bôas”, que percorreu 12 capitais brasileiras. Seu talento também foi reconhecido em Paris, em uma coletiva no Palais de la Découvert.

Ao longo de mais de 30 anos o documentarista constatou - e registrou, a constante luta dos indígenas pela sobrevivência que, apesar de tanto tempo, persiste. "Muitos tempo atrás escutei uma frase do Darcy Ribeiro que dizia que 'os indígenas eram fascinantes e que logo iriam desaparecer'. Claud Lévi-Strauss disse 'é uma outra cultura que temos o privilégio de conhecer, logo eles vão desaparecer'. Décadas depois, com a virada do século, a população indígena no Brasil cresceu. E não só a população, cresceu também a voz do índio: alguns se tornaram deputados, outros vereadores, e assim eles estão alcançando alguns espaços dentro da nossa sociedade. Nós temos que dar a eles o que têm de direito e - mais do que tudo, respeito".

"A mensagem é resistência, resiliência, respeito, atitude, mudança. Se nós não mudarmos, nós estaremos fadados ao fracasso, não como sociedade, mas como seres humanos, ao fracasso de vida, porque nós estamos matando o Planeta; e nisso os índios têm muito a nos ensinar...podemos recuperar? Sim, só que estamos começando a ficar atrasados demais. Hoje é Dia dos Povos Indígenas e tem gente ainda dizendo que índio bom é índio morto... inimigo de índio é inimigo meu", completa. 

Ao longo de mais de 30 anos o documentarista constatou - e registrou, a constante luta dos indígenas pela sobrevivência — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

Ao longo de mais de 30 anos o documentarista constatou - e registrou, a constante luta dos indígenas pela sobrevivência — Foto: Renato Soares/Arquivo Pessoal

"Reparar é preciso. Respeitar as terras que os povos indígenas ocupam. As demarcadas e as não demarcadas. Defender os direitos estabelecidos na Constituição de 1988: viver de modos diferentes, falar línguas próprias - são mais de 150 - preservar a cultura, a memória, as crenças e hábitos, a fraternidade com a natureza. As fotos em exposição cantam momentos felizes, entre sombras e luzes contam histórias. Renato Soares, maestro e fotógrafo, as ouviu e gravou com rara sensibilidade. Nas trilhas do Musa, deslumbrados, as vemos e ouvimos. Felizes por viver juntos." (Manifesto: Amazônia Indígena).


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