O carimbó é a origem de tudo: guitarrada, lambada, tecnobrega

Pricila Duque, Íris da Selva e Nilson Chaves: carimbó como elo entre tradição e o futuro — Foto: Reprodução/Redes Sociais



Artistas destacam o ritmo como a célula fundamental do som do Norte

Nascido da cultura indígena e africana, ritmo símbolo da Amazônia é elo entre gerações de artistas do Pará.


Por Gil Sóter, g1 Pará — Belém


Um dos mais emblemáticos símbolos da cultura da Amazônia foi celebrado em Belém nesta segunda-feira (26), o Dia Municipal do Carimbó.

A data foi escolhida em homenagem ao nascimento do Mestre Verequete, artista fundamental do ritmo. De origem indígena, a palavra deriva de korimbó, que em tupi significa pau oco que produz som; já o ritmo animado vem do batuque africano.

O encontro entre as culturas dos povos originários toma forma entre caboclos ribeirinhos, agricultores e pescadores no Pará, e se consolidou como célula original da musicalidade paraense.
A gente entende que o carimbó é a base da música paraense, é a origem de tudo: da guitarrada, da lambada, do tecnobrega. E a guia, a partir da qual vão se somando outros elementos, criando novas sonoridades", diz Jeft Dias, produtor cultural amazônico e diretor do Festival Psica.


O compositor, cantor e violonista Nilson Chaves, um dos maiores artistas do Norte do Brasil, concorda.

O Pará tem essa riqueza rítmica extraordinária: temos o siriá, a chula, retumbão, xote bragantino, guitarrada, brega, tecno melody. Mas o carimbó é o grande piloto dessa história toda”, diz o artista, que estabeleceu hinos da música amazônica, como “Sabor Açaí”, “Olho de Boto” e “Tô que tô saudade”.

O carimbó tradicional é feito pelo curimbó, tambor feito de tronco de árvore, e traz nos temas das composições o culto às belezas naturais, cantando os modos de viver do ribeirinho, sua alimentação e as lendas amazônicas.


Além do curimbó, a música tradicional conta com o ganzá, o reco-reco, o banjo, a flauta, os maracás, o afoxé e os pandeiros.

Quando a música começa a tocar, os casais formam uma roda. As mulheres fazem movimentos circulares com a saia como se fossem jogar a peça sobre a cabeça de seu par.


Os passos são marcados com um dos pés sempre à frente do corpo. Existe ainda o momento conhecido como a dança do peru, quando o dançarino precisa pegar só com a boca um lenço caído no chão.

Em seu repertório, Nilson Chaves produziu carimbós estilizados, e reforça a relevância estética do ritmo para a renovação da cena musical amazônica.

“O carimbó é uma referência importante no sentido de representatividade na minha música. Eu sou naturalmente um compositor da Amazônia, que mesmo se fizesse um samba, esse samba teria sotaque da Amazônia. Então o carimbó, como essa estrutura fundamental, sempre será uma fonte de conhecimento, de pesquisa e de evolução de cada compositor dessa nova geração. Isso é inquestionável. São nossos grandes mestres e a gente bebe o tempo todo dessa fonte, permanentemente”.


Carimbó urbano


Entre os frutos que brotam da semente do carimbó, Íris da Selva surge como destaque da nova geração. O batuque pau&corda norteia sua sonoridade, mas não a define.

A partir da tradição ancestral rítmica do caboclo ribeirinho, o músico da periferia de Belém soma ao carimbó o lirismo de suas composições existenciais.


É o olhar contemporâneo lançado pelo jovem artista trans, nascido na Amazônia urbana, forjado como músico de rua, que tem como referências os mestres e mestras do carimbó do Pará profundo, na mesma medida que reverencia o cancioneiro popular da música brasileira. Íris surpreende, com sua voz mansa, e despressuriza a velocidade do carimbó, o torna íntimo, confessional.


Íris nasceu em Icoaraci, distrito de Belém, pólo fundamental do carimbó do Norte do país, terra de Mestre Lourival Igarapé, Mestre Jaci e de Verequete.



Grupo Cobra Venenosa — Foto: Hugo Chaves / Divulgação


Assim, o carimbó urbano - forjado por jovens músicos da cena independente que introduzem à poética do carimbó debates e vivências próprios da juventude periférica da cidade - torna-se o caminho inevitável de Íris, que integrou grupos como Batucada Misteriosa, Cobra Venenosa e Caranguejo no Mangal.



“Foram os músicos do batuque que abriram as portas pra mim, me acolheram e me ajudaram a encontrar meu próprio caminho no carimbó. Sem falar no contato com os mestres, que eu tenho muito carinho: Mestre Thomaz Cruz, Ney Lima, Lourival Igarapé. Também aprendi muito com Priscila Duque, Hugo Caetano, Lucas Freitas, Bruna Suelen que são pessoas que pesquisam o carimbó em aspectos distintos”, diz Íris.





Uma das atuais cenas mais efervescentes do Pará, o carimbó urbano traz nas temáticas crônicas da vivência na cidade, suas contradições socioeconômicas, combate ao racismo, ao machismo, revelando uma profunda tendência política e de resistência produzida por jovens músicos da Grande Belém.


Há ainda outras singularidades em relação ao tradicional carimbó pau&corda. Muitos dos grupos tocam com tambores feitos de tubo de PVC, e outros instrumentos como banjo também são feitos de reciclagem, além de ganzais e milheiros feitos de metais reciclados.


O carimbó tradicional traz todos os músicos com uniforme, os dançarinos também com as roupas combinando. Já o carimbo da cidade abre mão disso e cada músico do grupo tem seu estilo próprio de vestir, uma estética mais urbana, despojada, uma moda de resistência.



“Eu trabalho muito nos meus figurinos a questão da reutilização de materiais, do brilho, trago as performances que são inspiradas no movimento drag queen”, descreve Priscila Duque, uma das artistas centrais da cena e que fortaleceu debates importantes para a modernização do carimbó, como o protagonismo feminino e a presença de mulheres no curimbó, lugar historicamente masculino.




Cobra Venenosa, com Priscila Duque no vocal, se apresenta no festival Psica: carimbó urbano mostra ritmo em roupagem futurista e política — Foto: Divulgação


Também cria de Icoaraci, Priscila conta que o espaço cultural Coisas de Negro, atuante há 25 anos no distrito, articula um movimento de fortalecimento do carimbó na cidade, com mestres da Vila de Icoaraci, como Thomaz Cruz, um dos primeiros a fazer “mangueio”, quando os músicos tocam pelas ruas, pelos ônibus, e passam o chapéu para que o público contribua financeiramente com os artistas independentes.

“Essa prática nasce da necessidade. Muitas vezes a gente não consegue pauta para tocar em lugar nenhum, nenhuma casa de show, bar ou festival. Então Mestre Thomaz colocava o tambor na bike e ia tocar nas feiras, na orla, no Ver-o-Peso”, conta.

Íris também enveredou pelas estradas do mangueio. “Fiquei muito imerso no carimbó. Aprendi muito, tive muito direcionamento poético através do carimbó. Foi o carimbó que me trouxe essa identidade. Entendi o carimbó como estilo de vida, não é apenas um gênero musical. É o jeito que a gente pensa as coisas, como se comporta”, diz Íris.



“Também entendi muito sobre a desvalorização do trabalho informal. Conheci pessoas que trabalhavam com outras coisas, que vendem bombons no ônibus. Foi muito importante pra eu criar uma consciência do meu lugar. Então é difícil romantizar, mas na maior parte do tempo, eu me emociono com essa grandiosidade, a generosidade que o carimbó tem pra agregar pessoas, estilos e formas de pensar”, detalhou.

Dessas andanças, se revela o caminho de Íris: uma sonoridade que parte da tradição do carimbó pau&corda, se volta ao contexto urbano, e se subjetiva cada vez mais, ao debruçar sua poética em temas do mundo particular de Íris, artista não-binário, amazônida, nascido e criado na periferia, que tem como referências a MPB e os mestres e mestras da cultura popular nortista. Uma estética singular, contemporânea, e que já se impõe como um marco do carimbó moderno.

“Confesso que essa estética aconteceu de forma muito natural pra mim, mas o ponto de virada foi quando eu entendi que carimbó também é ressignificação do tradicional. Isso me fez perceber que a cultura popular é generosa e que há espaço pra falar da nossa realidade particular, mas que também é coletiva, sabe? Então, se Mestre Dikinho, lá do Marajó, fala da realidade do vaqueiro e do pescador, que é o que ele viveu, por que eu não poderia falar da minha realidade também? Mestre Dikinho também tocou muito choro e isso tornou o carimbó dele cheio de harmonias peculiares, mas que não descaracterizou o estilo. Então, eu não inventei a roda, na verdade achei meu lugar dentro desse universo da cultura popular”, diz.

Encontro de gerações

Do ofício de ser artista amazônico, os caminhos de antigas e novas gerações se entrelaçam. Íris da Selva e Nilson Chaves se preparam para, pela primeira vez, subirem juntos no palco em um show que mostra a potência do lirismo da canção do Norte. O encontro inédito ocorre a convite do Festival Psica.

“Não tem como pensar o Psica sem envolver carimbó. No festival, colocamos vários grupos de carimbó nos palcos principais. A gente entende que a ancestralidade faz parte do Psica, faz parte do nosso povo, da cultura periférica urbana da região metropolitana de Belém, da Amazônia no geral”, diz Jeft Dias, diretor do Festival Psica.




Edição de 2021 do Festival Psica, em Belém. — Foto: Divulgação / Vitoria Leona



Com mais de 50 anos de carreira e 30 discos gravados, Nilson Chaves tem reconhecimento nacional e internacionalmente.

O artista forjou uma linguagem poética e musical amazônica que influencia artistas através do tempo. Íris da Selva, destaque da novíssima safra de artistas paraenses, é um desses frutos também semeados pelo legado de Nilson.


Suas músicas, de alegre melancolia, evocam ancestralidade, a energia das águas, e trazem elementos da “regionalidade” para criar metáforas sobre sentimentos universais.

“Sou um artista que decidiu falar desse lugar, de quem nasceu na Amazônia, nesse espaço em que vivemos, Nilson e eu. Os artistas dessa geração atual têm essa cola com os artistas de outras gerações e o Nilson também assimilou o carimbó dentro do trabalho dele. Esse é um elo entre nossa arte, que está ligada à cultura amazônica”, diz Íris.

“Para mim, é uma honra participar do Psica, que busca valorizar a música que se faz na região amazônica, seja urbana ou mais raiz. Neste show, vou dividir o palco com Íris da Selva, que também tem um trabalho autoral e é um grande cantor dessa nova geração do estado do Pará”, celebra Nilson.

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