Os holofotes brasileiros e franceses se voltaram para a Ilha do Combu, em Belém, na tarde de 26 de março de 2024, para a expedição dos presidentes da França e do Brasil – Emmanuel Macron e Lula – com o objetivo de condecorar bēnjadjwáriy kayapó Raoni Metuktire com a ordem do cavaleiro da Legião de Honra da França, a maior honraria concedida pelo país aos seus cidadãos e a estrangeiros que se destacam no cenário mundial.
Assisto de longe, através de uma transmissão ao vivo pelo Instagram, ao transcorrer da cerimônia num cenário cinematográfico, que só percebi plenamente que o era quando fui morar fora e ele deixou de ser o quintal de casa. O mise en scène onde os líderes de Brasil e França, países colonizadores da Amazônia, “humildemente” se dirigem até à liderança indígena, mesmo quando este lugar está a quase mil e quinhentos quilômetros do território onde vive o homenageado. Porém, convenientemente tem a exuberância amazônida com a vista do skyline de Belém, uma selva de pedras encravada na floresta, com seus rios, terras e ares poluídos. Belém, a cidade que se formou em cima da exterminada Mairi, Belém onde nasci, Belém do meu amor e Belém que será a sede da COP30 em 2025, evento que promete trazer melhorias nos mais amplos sentidos para o Estado do Pará.Foto de Ricardo Stuckert/PR
Raoni recebeu uma honraria criada por Napoleão Bonaparte, que foi o responsável pela fuga da família “real” portuguesa com sua corte para o Brasil e que tornou ainda mais palpável para o povo nativo a segregação racial, de gênero e social. Raoni recebe homenagens, Raoni recebe a todos. Não obstante, na língua macro-jê, seu título de liderança – bēnjadjwáriy – significa “cantiga” porque é ele quem sabe e tem legitimidade para proferir as cantigas que expressam o bem. Para os kayapós, um líder não é um mandatário e sim alguém que tem a capacidade de diálogo, de chegar a um bem comum e de representar os interesses coletivos. E é por isso que o mebêngêt pede apoio para receber o Prêmio Nobel da Paz, por saber que seu reconhecimento perante as nações que detém o poderio econômico e político do mundo significam visibilidade não só para as questões diretas do seu povo, mas para todos os parentes do massacrado Pindorama.
E é por isso também, em seu discurso proferido em macro-jê, que Raoni relembra a Lula que ele subiu a rampa do Palácio do Planalto para representar o povo brasileiro na posse de seu atual mandato de presidente da república e cobra a não-aprovação da ferrovia Sinop a Miritituba, mais conhecida como Ferrogrão, cujo projeto suprime parte da área do Parque Nacional do Jamanxim, unidade de conservação de proteção integral, sem qualquer contrapartida ambiental. Pelo olhar europeizado malicioso, os indígenas querem autoridade perante o uso de suas terras, das quais a posse constitucional é resultado de muita luta, por uma afirmação de poder político. Pelo olhar mercantilista ocidental, esta autoridade indígena sobre o Parque Nacional é o mínimo dos mínimos, tendo em conta o genocídio e subjugação das populações indígenas enquanto todo o continente era brutalmente invadido e explorado pelos colonizadores. Pelo olhar indígena, não é a terra que pertence aos humanos e sim os humanos que pertencem à terra, e, portanto, é o nosso dever nos portarmos como guardiões e impedirmos da natureza.
Foto de Ricardo Stuckert/PR
(fonte metmuseum.org)
Na gravura de meados de 1580, concebida pelo artista flamengo Stradanus, que ilustra o suposto “descobrimento” da América, o continente é representado por uma mulher branca, sexualizada, e que recebe com passividade o “conquistador” Américo Vespúcio. Em 2024, o presidente francês foi recebido por uma tríade amazônida feminina, duas indígenas e uma cabocla, que presidem o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e que de complacentes não têm nada. Sônia Guajajara, Joenia Wapichana e Marina Silva estão mais para versões contemporâneas das ykamiabas ou coniupuiaras, potentes guerreiras indígenas que botaram para correr a expedição de Orellana, segundo o relato de Gaspar de Carvajal (que erroneamente as mistificou ao compará-las com as mulheres guerreiras da Grécia clássica), o qual resultou na nomeação de “Amazonas” não só o Grande Rio mas toda a região. Wapichana, em seu discurso, fez questão de enfatizar que a sua participação no Governo Federal não é só de vitrine e sim de ação, plenamente consciente do poder simbólico que é ter as três entidades mais significativas para as lutas em prol do meio ambiente e dos direitos dos povos originários e tradicionais lideradas por mulheres da Amazônia, historicamente violentadas, silenciadas e apagadas no nosso protagonismo intrínseco. É um grande avanço, tento me convencer, mesmo que ainda estejamos muito longe de uma situação ideal.
Observo de longe as liturgias políticas com o coração cheio de uma “inveja movida por saudade” dos participantes que ostentam copos com suco de bacuri, uma das minhas frutas preferidas e que só existe na minha terra. Estamos todos muito felizes por receber os presidentes do Brasil e da França, com a esperança de que esta visita gere frutos positivos para o Pará e o nosso povo, mesmo quando a vozinha da razão, lá no fundo, assopra que quem ganha mais – e melhor – nessas coisas são eles.
Espero que, no final das contas, as vozes que ressoam escutem o canto de Raoni.
*Artigo publicado originalmente no Portal Buala
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