Era então uma vila de pescadores, uma descoberta de poucos, código secreto que se revelava apenas aos bacanas da época
A CANOA QUE SE QUEBROU NO IMAGINÁRIO
Um ano atrás estive em Canoa Quebrada, no Ceará. A expectativa era grande para o reencontro com o vilarejo, de falésias alaranjadas, que conheci nos final da década de 1970, então descoberto pelos hippies planetários.
Fui recebido, obviamente, por outra Canoa Quebrada. Nesse intervalo de 45 anos, ficou tão famosa quanto Jeri, ganhou estrada asfaltada (quase que eu me estrepo no trevo de acesso), pousadas (inclusive as de preços proibitivos) e restaurantes ao longo da Broadway, a rua principal. Como diria a Glória Pires, não me sinto em condições de opinar se Canoa preservou o espírito alternativo cantado por Raul Seixas. Mas ao menos sobrou suficiente deboche cearense para ter uma Broadway e chamar de sua.
E foi exatamente ao fim da feérica via de intenso comércio que reencontrei, com uma lua de beleza atlântica suspensa no céu, vestígios da minha proustiana Canoa. Revi a lua e a estrela tatuadas na falésia (dizem que com base em desenho feito por um paquistanês que passou por lá nos míticos anos 70). Depois esbarraria com a dupla, lua e estrela, em tudo que é canto ou rocha, tão numerosa quanto a legião de bugueiros que, zunindo estridentes, retorciam-se num leva e traz incessante de turistas.
Era como se tivessem erguido um novo cenário sobre as raízes daquela remota Canoa Quebrada dos meus 18 anos de idade. Acho que havia acabado de ler “On The Road”, de Jack Kerouac, a bíblia dos que se aventuravam a meter o pé na estrada. Mochileiro, cheguei a Fortaleza, no já recorrente (parece que estou naquele filme, sempre de volta ao mesmo período) final dos anos 70. Quando me dei conta que a realidade em Fortaleza não se adaptava às minhas fanfarras maluco-beleza, antes que meus recursos minguassem resolvi esticar até as alucinantes dunas de Canoa Quebrada.
Canoa (para os íntimos) era então uma vila de pescadores, sem pousadas ou restaurantes. Uma descoberta de poucos, um código secreto que se revelava apenas aos bacanas da época. Mais ou menos o que Algodoal representava, no mesmo período, para nós. Ainda antes, talvez, do início do reinado do saudoso Paulo Cal na ilha.
Se os homens se encontravam na terra de Marlboro, os mochileiros se esbarravam em Canoa Quebrada.
A sua fama de recanto paradisíaco havia chegado ao exterior. Não era difícil topar, no areal de suas vielas, com argentinos, espanhóis, italianos, franceses ou com alguma garota a fim (e afins). Com sorte, dava para descolar um canto e uma rede na casa de pescador, como eu descolei.
Passei uma semana entregue aos delírios da mente e às delícias da carne (de peixe). A bem da verdade, admito, não lembro como vivi aqueles dias – o que, no final das contas memorialísticas, é mais um ponto para a hipótese de ter passado em transe por aquelas dunas.
Mas o bolso, enfim, já acusava um nível preocupante de fundo de poço. Intuí que era hora de retornar ao ninho, sem mais delongas peregrinas.
Na volta, passei outra vez por Fortaleza. Constatei que o dinheiro que me restara daria apenas para comprar a passagem de volta, de ônibus, e um troco para comer um prato-feito numa birosca vagabunda de estrada.
Resolvi encarar a derrocada, o fim dos meus sonhos de viver como um herói dos romances de Jack Kerouac. Num último gesto aristocrático, como só os arruinados sabem ter, antes de pegar o ônibus decidi-me por gastar o dinheiro que me restava num daqueles hotéis 5 estrelas da orla.
Sentei para um lauto breakfast (ainda era de manhã). À mesa, servi-me de frios, mel, pães variados, ovos, leite, geleias, bolo, tortas, pratos quentes, com uma fome de retirante da seca. O que não pude comer, transportei, tão discretamente quanto (im)possível, para os bolsos. Meu intento era passar as 24 horas da viagem Belém-Fortaleza sustentado por aquele banquete matinal.
Ao desembarcar na terra natal, recepcionado por seus calores e umidades, fui recebido com as honras de quem foi, viu e voltou derrotado. E a felicidade de saber que Algodoal continua entregue às carroças. Ou não?
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