O poder transformador do cinema


Projeto “Cultura na Praça” promove oficinas de audiovisual e gera filmes realizados em cidades do Pará e Maranhão

Autor: Cíntia Magno

O projeto “Cultura na Praça” leva a comunidades locais o contato com o poder transformador do cinema para além do papel de espectador. | Ivan Oliveira/divulgação


Quantos olhares cabem dentro de uma tela de cinema? No interior do Brasil, distante das grandes salas de exibição, o contato com técnicas formais de produção cinematográfica faz chegar às telonas toda a diversidade possibilitada pela sétima arte. Percorrendo dezenas de municípios do interior do Pará e do Maranhão desde 2017, o projeto “Cultura na Praça” leva a comunidades locais o contato com o poder transformador do cinema para além do papel de espectador. Como resultado, o festival itinerante que recebe patrocínio do Instituto Cultural Vale, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, já reúne 35 curtas-metragens que podem ser assistidos, gratuitamente, na sala virtual Cine Babaçu.

Depois de ter mudado, ainda no período da chamada “febre do ouro”, para o distrito de Serra Pelada, no município paraense de Curionópolis, Luciano Ferreira de Lima, conhecido por todos como Zé Branquinho, com o tempo viu na produção audiovisual a oportunidade de uma nova profissão. Há mais de quinze anos, ele se dedica à captura de imagens que documentam a relação do município com a atividade da mineração e ainda outros assuntos.

Com mais de 60 filmes produzidos, foi aos 72 anos de idade, porém, que ele se viu diante da possibilidade de aprender técnicas de cinema com que nunca havia tido contato antes. Uma experiência transformadora e que continua gerando frutos. “Eu já falei com muitos artistas de filmes que andaram aqui querendo saber sobre a Serra Pelada, mas participar mesmo foi a primeira vez, com esse grupo maravilhoso que eu não sei nem como falar de tanta felicidade que eu fiquei de participar desse filme”, emociona-se. “Eu já sou cinegrafista há uns 15 anos, eu já tenho um equipamento muito bom, de alta definição, mas para mim foi uma enorme experiência. No passado, eu aprendi a filmar, mas não foi tecnicamente, e hoje eu estou com mais experiência, eu aprendi muito com eles e estou estudando, ainda, as apostilas que eles me deixaram aqui”


Zé Branquinho foi um dos que participaram das oficinas de capacitação e criação audiovisual desenvolvidas na 4ª edição do projeto “Cultura na Praça”, que neste ano de 2023 percorreu as comunidades maranhenses de Pindaré Mirim, Alto Alegre do Pindaré, Bom Jesus das Selvas (Vila Tropical/Verona) e Açailândia; e, no Estado do Pará, os municípios de Parauapebas, Canaã dos Carajás (Vila Bom Jesus), Ourilândia do Norte e Curionópolis (Serra Pelada). Nesta edição, as oficinas foram ofertadas para jovens de 13 a 19 anos e, pela primeira vez, duas delas foram dedicadas a pessoas com mais de 45 anos, oportunidade que foi abraçada de imediato por Zé Branquinho.

REPRESENTATIVIDADE

Mais do que aprender sobre gêneros cinematográficos e técnicas de construção de roteiro, de escrita, de direção de fotografia e de captação de som, o cinegrafista ainda teve a oportunidade de se ver pela primeira vez na tela do cinema. Resultado de uma das oficinas, o curta-metragem “Histórias que Inspiram” conta apenas uma das muitas batalhas travadas por ele ao longo da vida. “A gente participou da oficina de cinema e após, a gente fez um filme da gente, de uma história de luta pela vida minha”, conta, sem deixar de adiantar uma novidade. “Neste momento eu estou escrevendo o meu segundo filme. Eu já escrevi um agora essa semana, então esse é o segundo. São histórias que se deram na minha vida e que é diferente da que nós contamos na oficina. Eu faço minhas escritas e guardo, vou guardando. Tudo são histórias que a gente pode fazer um filme delas”.

A possibilidade de transformar histórias em filmes também foi apresentada ao jovem Reginaldo Pereira da Silva, de 18 anos. O interesse pela área da fotografia foi despertado ainda muito cedo, mas nunca de forma tão profunda quanto a trabalhada durante o projeto. “Eu participei da 3ª edição, criamos aqui na Serra Pelada o curta-metragem ‘Além da Sobrevivência’, eu e a minha turma. Nessa época eu fui monitor”, lembra. “Eu sempre gostei dessa área do audiovisual, só que era algo cru, eu não sabia muito sobre o assunto. Então, o ‘Cultura na Praça’ me ajudou bastante nessa área. Através deles, despertou o interesse em mim de ir atrás, estudar para saber mais sobre essa área”.

Já na edição de 2023, Reginaldo e os amigos que também participaram da oficina criaram o curta-metragem o “Diário de Hannah”, que faz um importante alerta sobre a necessidade de denunciar casos de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. “Na primeira edição, eu chorei na exibição, de ver que eu tinha feito aquele curta-metragem com os meus amigos e ver o quanto a gente é capaz de fazer essas coisas novas. Nesta edição [de 2023] eu fiquei mais feliz em ver o curta-metragem da turma de acima de 45 anos”, aponta. “A minha mãe participou. Ela ficou muito alegre porque tinha bastante conhecidos na turma e ela queria muito participar. Ela disse que gostou bastante e que se tiver de novo, vai querer participar de novo. Então, isso demonstra o quanto ela gostou e se interessou pela área”.

O interesse pela área também está expresso nas palavras da jovem Jaiane Brito Martins, 14 anos, que participou da oficina em Parauapebas. Estudante do 9º ano do Ensino Fundamental, ela sempre se interessou pela área do audiovisual e, pela primeira vez, pôde ter contato com os bastidores da produção cinematográfica. “Foi uma experiência maravilhosa participar do ‘Cultura na Praça’, estar ali aprendendo com todos. Desde pequena eu tinha uma vontade, uma curiosidade de saber sobre a área da direção, atuação. E quando eu tive essa oportunidade, não pensei duas vezes”.

Ao contar o que sentiu quando viu pronto o filme que ajudou a produzir, ela conta o que mudou após a participação no projeto. “Eu fiquei muito emocionada de ver o filme que eu tinha ajudado a fazer o roteiro passando na tela de cinema e de ver a emoção do público ao ver o filme”, lembra. “Antes eu via num filme só o que estava ali na tela. Agora, eu já vejo a técnica, a posição de câmera, como foi difícil gravar aquela cena, eu tenho toda a noção dos bastidores por trás daquilo, por trás de uma cena, por trás de um filme”.

Projeto também ajuda a movimentar economias locais


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|Ivan Oliveira/divulgação

A diversidade de olhares proporcionados pelos filmes produzidos durante as edições do “Cultura na Praça” não está posta na tela do cinema à toa. Na medida em que aposta no potencial criativo de cada participante das oficinas, o projeto potencializa os olhares das próprias comunidades durante o processo de produção cinematográfica.

Cineasta e coordenador do “Cultura na Praça”, Cris Azzi conta que o projeto nasceu com a ideia de levar cinema e arte para cidades e comunidades que têm pouco acesso à cultura. A partir de 2019, porém, surgiram as oficinas de cinema, onde as turmas têm uma iniciação sobre questões teóricas e técnicas relacionadas ao cinema e são convidadas a criar um filme. “Uma grande tela de cinema era montada em espaços públicos, ginásios, escolas, e os filmes eram exibidos. Mas de uma maneira muito rápida a gente percebeu que essa tela ganharia mais potência se ela fosse ocupada com os olhares e as histórias das próprias cidades e comunidades por onde a gente passa”.

Depois de editados e finalizados, aí sim, os filmes produzidos pelos participantes das oficinas voltam para essa tela para serem exibidos para as suas comunidades. “As histórias são, de fato, diversas, porque o processo de escolha do tema em que os filmes vão ser abordados é um processo com autonomia. São as turmas que definem, trazendo as suas próprias identidades, as suas emoções, às vezes questões culturais do próprio local, e também as suas referências”, avalia Cris.

“Entre as pessoas que participaram das oficinas e o público, já são mais de 40 mil pessoas impactadas pelo projeto, mas esse número é muito maior, porque também o ‘Cultura na Praça’ movimenta a economia local, contratando fornecedores em cada uma das áreas onde a gente passa com as oficinas, e isso é, de fato, o que a cultura e a arte geram. O processo entre a produção, a criação e a circulação de um filme envolve muita gente e movimenta a economia, gera autoestima, cria uma sensação de pertencimento, o fortalecimento das identidades locais, criando uma rede muito poderosa”, destaca o cineasta.

CINEMA VIRTUAL

Os filmes produzidos durante as oficinas do projeto “Cultura na Praça” são exibidos em grandes telas para as comunidades, com apresentações artísticas locais, e depois seguem para um ambiente virtual, dentro da sala de cinema virtual chamada Cine Babaçu, acessível através do endereço culturanapraca.art.br/. Neste momento, a sala já conta com 35 curtas-metragens com acesso gratuito para que qualquer pessoa possa assistir às obras.

O Projeto Cultura na Praça é patrocinado pelo Instituto Cultural Vale, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

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