Que tal um passeio no Parque Soledade?


 
O novo Parque Soledade é a revitalização de um guardião de memórias e momentos históricos
Autor: Wal Sarges

     
 As memórias de Krishna com a família também são divididas agora na visita com os amigos ao Parque | Alberto Bitar/Diário do Pará


Entre mausoléus e diversas outras construções fúnebres, o Cemitério Nossa Senhora da Soledade, em Belém, guarda memórias que não estão ligadas apenas à morte, mas àquelas geradas também na infância ou adolescência, em idas ao local com algum familiar para fazer visitas aos entes que já partiram, ou mesmo para uma oração aos ditos “santos populares”. Com estilos arquitetônicos diversificados, o futuro Parque Público conta muito sobre a história da nossa gente.

Da suntuosa Belle Époque do século 19 à contemporaneidade, o futuro Parque Público pode nos oferecer uma grande relevância cultural, a partir da riqueza que se dimensiona nesta construção. A cenógrafa Krishna Silva tem apenas 24 anos, mas carrega consigo memórias de quando era criança e o pai dela, Manoel da Silva, ligado à área de conservação e restauro, levava a filha para um passeio no cemitério.

Ela conta o quanto isso formou sua perspectiva diferenciada sobre aquele lugar. “Visitar o Parque da Soledade é incrível. Moro no bairro da Campina e o Cemitério da Soledade sempre foi um espaço muito íntimo, não só pela proximidade, mas por visitá-lo com muita frequência. Nas minhas andanças com meu pai, ele ia explicando sobre os detalhes das construções, o significado delas e toda aquela riqueza de história que envolve este lugar. Tudo isso ficou nas minhas memórias como um passeio divertido”, diz Krishna.
  📷 |Alberto Bitar/Diário do Pará

Já a mãe dela, a mentora de Yoga, Thelma da Silva, conhecida como Tunga Vidya, levava a filha para aquele cemitério para explorar o lugar como espaço de criação artística. “Participei de um espetáculo chamado ‘Nas Entranhas do Soledade’, junto com minha mãe, que exalta esse espaço, criando um laço afetivo com o Cemitério. Em outro momento, eu fiz um vídeo onde criei um personagem de uma menina que gosta de passear pelo cemitério da Soledade. Então, meu afeto com o espaço vem antes da reforma e, hoje, ver o espaço sendo visitado e valorizado por tantas pessoas, me deixa muito feliz”, ressalta a cenógrafa.

Depois de adulta, Krishna voltou ao Soledade junto com um grupo de amigos da faculdade de artes visuais. Esse revistar o passado trouxe novas memórias. “Foi muito intrigante porque pesquisei o parque, fiz visitas, conversei com pessoas que eram frequentadoras do cemitério, ouvi o padre que fazia as orações da capela, vi pessoas fazendo as oferendas, então, agora com essa reforma, lembrei de tudo e espero que toda a história seja valorizada porque conheci o antes do Cemitério e o valor que as pessoas atribuíram a ele. Espero que hoje novas histórias sejam contadas sem esquecer as antigas”, enfatiza.

“Acompanhar a restauração enquanto frequentadora desse espaço foi um sentimento de expectativa e curiosidade muito grande. Estudei um ano do curso de conservação e restauro, eduquei meu olhar sobre os casarões antigos e o cemitério da Soledade. Hoje curso artes visuais e meu olhar sobre a arte que se encontra nesse espaço é de encantamento”, conclui Krishna.

PATRIMÔNIO

A professora Paula Andréa Rodrigues, Doutora em Comunicação, Linguagem e Cultura, comenta que o Cemitério da Soledade sempre foi interessante, sobretudo, do ponto de vista do patrimônio. “Tanto que ele possui tombamento federal desde 1964. Ou seja, é um bem cultural de relevância para toda a nação. Acontece que, por anos, ele estava esquecido e abandonado”, critica.

“É preciso abandonar o “preconceito” que a palavra carrega e ver além de um simples local de enterramento. O Soledade é o registro precioso de uma época, um lugar de sociabilidade e de devoções, com arquitetura funerária de grande valor artístico. É preciso desmistificar a morte e apreciar a beleza e o conhecimento que este cemitério monumental carrega”, pondera Paula Andréa. 📷 |Alberto Bitar/Diário do Pará

Ainda de acordo com a professora, o Cemitério da Soledade não é grande, em comparação aos modelos europeus que o inspiraram, e pode ser conhecido em sua totalidade em uma única visita. “De acordo com o interesse do visitante, abre-se um leque de possibilidades. Uns podem preferir contemplá-lo artisticamente, observando as características do período do Romantismo, com a arquitetura Neoclássica e Eclética”.

Pelo menos 14 personagens se destacam entre os demais sepultados do Soledade. São os chamados “santos populares”, uns com jazigos mais suntuosos, outros menos etilizados e outros ainda, que estão em processos de restauro. É o que comenta a técnica da Secretaria de Estado de Cultura (Secult) Sabrina Campos. “O Cemitério da Soledade foi construído em meio a um período de pandemia de febre amarela e cólera, então, abrigou pessoas de todas as classes sociais. Ele demarca ainda o período em que a cidade passou a sepultar seus mortos em cemitério, porque antes os enterramentos eram feitos em casa ou nas igrejas”.

Ali está sepultado, por exemplo, o corpo do construtor do Soledade, Joaquim Victorino da Silva. Ele é uma das figuras que mais são visitadas no espaço. Outros nomes bem conhecidos por lá são: o juiz Joaquim Ignácio de Almeida, onde são depositadas velas em favor de causas na justiça; o de Raimundinha Picanço; o do menino José; os dos irmãos gêmeos; e o da “princesa” Cecília Augusta Chermont. Este último tem até um busto para eternizar os traços delicados e formosos da menina, que por isso ganhou o título de princesa.

Paula Andréa comenta que alguns desses personagens são “figuras públicas com importância histórica para a região”. Como o caso do mausoléu do General Gurjão, que morreu em decorrência de ferimentos ao combater na Guerra do Paraguai. “Há ainda alguns ligados aos aspectos sociológicos e antropológicos, que remetem às devoções populares, a sociabilidade que ali se desenvolve”, acrescenta.

Uma das novidades do Parque Soledade é a manutenção de uma das mangueiras existentes no local, onde são depositadas oferendas atribuídas aos visitantes de religiões de matrizes africanas. “Percebemos que a manutenção da árvore no lugar onde está representa respeito a estas religiões. É a forma como eles expressam sua devoção, ofertando alimentos e bebidas aos seus orixás”, ressalta a técnica Sabrina Campos.

É “é preciso conhecer para valorizar”, arremata Paula Andréa. “O princípio básico para a preservação e conservação de um bem está ligado ao conhecimento. Neste ponto, são fundamentais as ações de educação patrimonial. A abertura dos portões de ferro do Soledade convida as pessoas a entrarem em um lugar de fruição do conhecimento, com inúmeras possibilidades. Costumo dizer que precisamos buscar o ‘belo’ e o ‘bem’ em tudo o que fazemos, portanto, devemos procurar beleza até na morte”, ensina a professora.

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