Orlando Tadeu Ataíde Leite
Reducionismo literário
Tenho próprio casal e
nele assisto.
Este, caro leitor, nada mais é que um dos versos – 5º verso da Lira I, Parte I –
do famoso livro Marília de Dirceu, de
autoria do mais importante poeta árcade de nossa literatura, Tomas Antônio
Gonzaga, que nasceu em Portugal mas viveu grande parte de sua vida no Brasil. O
que esse verso significa? Você saberia, mesmo sendo um leitor proficiente e
assíduo frequentador de bibliotecas? O que “trava” a compreensão? Seria os
termos “casal” e “assisto”? Parece.
Nesses
casos, geralmente os editores lançam mão do recurso do rodapé da página, onde o
leitor poderá “ler” aquilo que não compreendeu. Mas essa é uma decisão
solitária dos organizadores textuais, já que não é nada fácil saber que
dificuldades hermenêuticas terão os leitores.
Escrevo
este artigo para chamar à reflexão a respeito do modismo inventado pelas
editoras que pretendem “incentivar” o hábito da leitura. Isto se daria com a “atualização”
da linguagem truncada e difícil que certos autores apresentam. É o caso, por
exemplo, do grande Machado de Assis. Este autor de nosso Realismo, certamente o
maior de nossos escritores, é considerado “difícil”, com uma linguagem
supostamente pouco acessível, especialmente aos principiantes e jovens
leitores.
Ora,
em princípio a ideia parece apropriada, pois a leitura faz-se unanimidade
quando se pretende melhorar os níveis de ensino da língua e da própria inserção
social e cidadã via maior compreensão do mundo e da sociedade num patamar de
maior senso crítico.
Mas
“atualizar” Machado e tantos outros expoentes literários me parece mais um
processo de castração, de sangramento do potencial criativo e autoral. Lançar
um “Memórias póstumas de Brás Cubas” em quadrinhos ou “traduzindo” todos os
termos considerados “de difícil acesso” é tirar do leitor a essência e a
originalidade do texto.
É
certo que encher uma página de apêndices também trunca a leitura, tira a
atenção, pois é aquela história de um olho no padre e outro na missa. Em “Dom
Quixote”, por exemplo, há uma edição em que você lê, em algumas páginas, 20% de
texto e 80% de citações de rodapé.
Nessa
discussão, o que fica claro para mim é que, antes de se facilitar a leitura com
uma simplificação que considero, como autor que sou, grosseira e intempestiva,
deveríamos, sim, ofertar aos leitores incipientes um suporte operacional que
lhes garantissem condições reais de fazer uma boa, proficiente, e sobretudo
prazerosa leitura.
Aí
você questiona alguns termos que empreguei e que podem dificultar a leitura.
Isso é ruim? Não, é só ir ao dicionário e seu horizonte comunicativo ficará
mais rico e diversificado, pois você descobrirá mais um pedacinho do mundo.
Em tempo: “casal” é “casa”, “moradia”,
e “assisto” é “moro”. Portanto Dirceu assegurava a sua Marília que ela podia
ficar tranquila, pois teria casa própria, quem sabe uma versão literária para o
“Minha casa, minha vida”.
Orlando Tadeu Ataide Leite otadeu@ymail.com
Rua Raimundo B. Santana, ps. Santa Fé, nº 36, Centro,
Marituba/PA 3256 7540
0 Comentários