Ícaro Gomes *
Meu velho pai não mascava tabaco e não bebia nada alcoólico, mas um bom café quentinho de grãos triturados por ele mesmo no pilão era seu vício. E o cafezinho sempre vinha acompanhado de suas histórias e estórias. “Seu Veríssimo” era um caboclo engraçado e tinha mania de repetir os causos contados e recontados, eu presenciei dezenas de travessias dele do derrubado para Maracanã, mas a história era sempre a mesma.
Bem, um dia resolveu contar uma estória sobre um reino encantado - eu ainda era um belo adolescente com os olhos verdes, cabelos castanhos claros, jogador de basquete do clube do Remo e praticante de canoagem – aliás, um império engraçado: Era uma vez “Seu Veríssimo” contou que conheceu um reino com muitas perspectivas de prosperidade, povo trabalhador que semeava, plantava e colhia; um reino muito antigo com tradições, brasões, hino, casarios marcantes; tinha também um grande campo natural de onde se extraia uma frutinha no fim de um ano e inicio de outro; anualmente havia a safra de um peixe delicioso que era abundante no início do verão e muito utilizado nas rodas de súditos amigos num ritual carinhosamente chamado de ‘avuado’; muitas praias belas e paradisíacas - inclusive uma bem famosa em outros reinos e que sempre recebia monarcas visitantes de outras paragens. Na frente do reino uma bela igreja erguida pela força de devotos, alguns escravos, com o altar voltado para o rio. Sim, o reino era banhado por um caudaloso rio com fartura de peixes, mariscos e crustáceos, extensos manguezais com sua fauna e flora, aves vermelhas e brancas voando de um lado para o outro, tinha também umas aves pretas que voavam alto, mas grande parte do tempo estavam em terra ‘zanzando’ num balé pelo prédio onde funcionava a feira de escambo do reino. Os súditos gostavam de uma dança interessante em que todos dançavam sós. Já a juventude dançava também uns sons vindos de paragens distantes e massificadas por um antigo rei chamado Bob Marley I. Sim, tinha também uma grande varanda que seguia toda a primeira rua do reino, onde casais enamorados apreciavam o pôr-do-sol e o nascer da lua. O lugar era mesmo apaixonante e encantador, entretanto, governado por uma sisuda rainha.
Com o passar dos dias “seu Veríssimo” foi também sendo apresentado a outras coisas do reino, já não tão condizentes com as belezas naturais. Logo percebeu que o povo do reino - mesmo sendo trabalhador - era triste, muitos jovens e crianças sem ter o que fazer, perambulavam pelas ruas ou viviam fazendo coisas erradas; o povo para fazer sua higiene pessoal tinha que recorrer a grandes tonéis carregados na cabeça; os pensadores com formação não tinham empregos e eram substituídos por intelectuais importados de outros reinos; os impostos foram aumentados e a renda dos súditos reduzida, diminuindo o movimento na praça do escambo. O curioso é que apesar disso, a família da rainha exercia os cargos mais importantes e estabelecia leis na “marra” querendo dominar a todos e todas, incluindo entidades como sindicatos. O detalhe maior é que a rainha e seus familiares adoravam foguetório, qualquer “servicinho básico” e era um pipocar e repipocar de rojões, assustando crianças e os cachorros que corriam em todas as direções. No reino alguns bobos da corte que era devidamente pagos para divertir a rainha e defende-la nos comentários de esquinas e numa tal rede livros de caras, sei lá.
“Seu Veríssimo” notou outra coisa: tudo no reino era pintado da mesma cor, amarelo e azul. A rainha logo ao assumir mandou chamar um cacique que reuniu vários súditos e lá saíram a pintar o que via pela frente: Varandas, prédios, praças, muitas casas de vassalos da soberana alugadas como anexos do castelo, manguezais, praias, currais, matapis, cacuris, sarjetas e árvores. O pior é que a rainha mandou propagar nos alto falantes da corte que aqueles manguezais, praias e árvores repintadas haviam sido construídas por ela. O reino todo tinha que respirar amarelo e azul. O Paço da Rainha, esse então, era pintado e repintado constantemente.
Agora os súditos estavam muito confusos e se sentiam massacrados principalmente pela família da rainha e os mais ‘chegados’ do castelo – príncipes e princesas, barões, curandeiros, conselheiros, bobos... que adotaram o costume assim como a monarca de trocar suas carruagens, cada uma mais reluzente que a outra. O povo não podia reclamar, pois senão havia perseguições de todas as formas e aqueles mais críticos e que emitiam opiniões nos murais virtuais eram taxados como inimigos da rainha e acusados de não ter amor e só servirem para denegrir a imagem do reino. Ainda se estabeleceu uma marca para definir o domínio, que associada às cores amarela e azul serviria para tudo que se fizesse naquela terra, de agora em diante tudo teria que ter o brasão da monarca: Quem ama cuida!
Aliás, a medida tomada pela monarca, tornou-se também involuntariamente na única diversão dos súditos, que fizeram um trocadilho com o brasão e passaram a chamar a monarquia de mamata, com o sugestivo: “Quem mama cuida!”.
Bem, “Seu Veríssimo” não contou o fim da estória. Não se sabe o que aconteceu com o reino, nem com a família da monarca, pouco se sabe sobre o destino de cada um. Muito menos se sabe sobre o que os súditos fizeram. Talvez o fim da estória seja contada num novo capítulo no futuro.
· Especialista em educação e blogueiro
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