POR QUE nunca precisamos de cotas no futebol?
Por Felipe Carrilho
“NÓS não temos um problema racial. No Brasil, os negros conhecem o 
seu lugar”, diz um sinistro ditado, que poderia servir de epígrafe para 
análises de intelectuais conservadores ou mesmo para ilustrar muitos 
comentários que se lê por aí nas redes sociais em tempos de 
implementação de políticas reparatórias por parte do governo federal.
Muitas são as janelas que permitem sondar a dinâmica social de um 
país. Esta coluna procura fazer isso por meio da história do futebol 
brasileiro. No mês da Consciência Negra, cabe indagar em que medida o 
processo de integração dos descendentes de africanos no esporte que se 
tornou uma verdadeira “instituição nacional” pode revelar o destino 
social que a população negra do Brasil teve no período pós-abolição do 
sistema escravocrata.
No final do sáculo 19, a intelectualidade do País estava empenhada em
 discutir a questão da nacionalidade brasileira que tinha na presença do
 negro, no seu entender, um problema crônico. Optou-se, então, por uma 
política de branqueamento, na qual o incentivo à imigração europeia para
 abastecer as lavouras de café e a produção da indústria era 
fundamental. Para Oliveira Viana, o apologista mais notório da 
arianização da nossa sociedade, o mestiço representava um atraso 
inevitável para o Brasil que só poderia ser amenizado com a diluição 
gradual e progressiva do elemento negro.
Nas décadas subsequentes, apartados do trabalho formal, os 
descendentes de africanos foram protagonistas no processo de 
democratização do futebol, cuja prática estava até então reservada para 
os filhos das nossas elites, encastelados nos clubes grã-finos das 
principais cidades. Atuando nos times de várzea, com bolas e uniformes 
muitas vezes improvisados, o negro mostrou competência esportiva e 
esteve no centro da luta pela profissionalização do futebol, que dava 
estatuto de trabalhador formal ao jogador.
Em seu livro Corações na Ponta da Chuteira, o historiador Fábio Franzini apresenta uma emblemática disputa ocorrida no dia 13 de maio de 1927. Um jogo que opunha duas seleções, a dos brancos, jogadores das maiores equipes paulistas da Associação Paulista de Esportes Atléticos, e a dos negros, que atuavam em divisões secundárias ou mesmo em clubes da liga amadora. O jogo terminou com a vitória da “seleção negra” por 3 a 2, e o sucesso de público fez com que o encontro fosse repetido por mais de 10 anos, com ampla maioria de vitórias dos negros.
Em seu livro Corações na Ponta da Chuteira, o historiador Fábio Franzini apresenta uma emblemática disputa ocorrida no dia 13 de maio de 1927. Um jogo que opunha duas seleções, a dos brancos, jogadores das maiores equipes paulistas da Associação Paulista de Esportes Atléticos, e a dos negros, que atuavam em divisões secundárias ou mesmo em clubes da liga amadora. O jogo terminou com a vitória da “seleção negra” por 3 a 2, e o sucesso de público fez com que o encontro fosse repetido por mais de 10 anos, com ampla maioria de vitórias dos negros.
É possível inferir muita coisa desse fato histórico. Primeiro que, 
apesar da demonstração de domínio das técnicas do jogo, o negro ainda 
encontrava-se na periferia do futebol, atuando em equipes menores. 
Depois, sob o pretexto de celebrar a abolição (13 de maio passou a ser a
 data oficial do evento), explicitava-se naturalmente a segregação dos 
campos de São Paulo. Mas o que interessa enfatizar aqui é o surgimento 
de um discuso de elogio às potencialidades do negro dentro de campo. 
Discurso com implicações variadas.
O mito do nascimento do estilo brasileiro de jogar conta que foi a 
partir da inclusão das classes populares, notadamente dos 
afro-descendentes, que nos apropriamos de fato daquele esporte surgido 
na Inglaterra em meados do século 19. Para Gilberto Freyre, a conversão 
do “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, por influência 
dos movimentos corporais do samba e da capoeira, seria resultado do 
processo de mestiçagem verificado no Brasil.
Estavam lançados os fundamentos da interpretação conservadora sobre a
 integração do povo brasileiro, a “fábula das três raças”, exemplificada
 no triângulo em que o branco ocupa do vértice de cima, sobrando para o 
negro e o índio os vértices da base. A “ausência” do racismo sendo 
explicitada pela interdependência dos vértices.
Na verdade, o elogio das potencialidades físicas do negro, ao mesmo 
tempo em que concorria para a formação positiva da identidade nacional 
brasileira dentro e fora das quatro linhas, também expressava a 
imposição de certa hierarquia social. Aos negros caberia ocupar os 
espaços do lazer, notadamente do samba, carnaval, capoeira e do futebol,
 longe da racionalidade dos postos de comando e de produção do 
conhecimento. O discurso elaborado pelo branco sobre as pré-disposições 
do negro pelas artes corporais, em última análise, aponta para o lugar 
subalterno que os afrodescendentes deveriam ocupar na sociedade. É por 
isso que não precisamos de cotas no futebol. Essa foi a parte que coube 
ao negro na hierarquia brasileira das raças.
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